A ESCRITA COMO RESISTÊNCIA E REPRESENTATIVIDADE
A ESCRITA COMO
RESISTÊNCIA E REPRESENTATIVIDADE
NA OBRA QUARTO DE DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE
JESUS
Autora: Lívia Ramos Diniz
Não se pode esquecer, jamais, o movimento executado
pelas mãos catadoras de papel, as de Carolina Maria de Jesus que,
audaciosamente reciclando a miséria de seu cotidiano, inventaram para si um
desconcertante papel de escritora.
Conceição Evaristo (2009)
1.
Introdução
O livro Quarto de
despejo: diário de uma favelada (2014),
da escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), é um marco na literatura
brasileira e amplamente reconhecido internacionalmente. Ele foi “traduzido para
14 línguas, publicado
em 20 países, circulando por 40 países, cuja venda alcançou a marca de um
milhão de exemplares”, (FERNANDEZ, 2015, p. 221). A partir da leitura dessa obra podemos reconhecer o lugar de fala de Carolina e também
conhecer o modo com que ela apresenta suas percepções acerca de variadas
temáticas, dentre elas: o racismo, a política, o feminino, a sua trajetória de
vida e o ato da escrita. Assim, podemos
dizer que o caráter documentalista coexiste com o literário em Quarto de despejo e que, neste estudo, teremos
como objetivo destacar o poder da sua escrita como resistência e representatividade
da mulher negra.
2. Lugar de Fala e o ato da escrita
No livro
O que é lugar de fala? (2017), da
filósofa Djamila Ribeiro, ela amplia o conceito do termo a partir da negritude
e tendo como referência autores como Patrícia Hill Collins, Sueli Carneiro,
Lélia Gonzalez, dentre outros autores. Em outro livro de sua autoria, Pequeno manual antirracista (2019), ela
explica que: “o conceito de lugar de fala discute justamente o locus social, isto é, de que ponto as
pessoas partem para pensar e existir no mundo, de acordo com as suas
experiências em comum. É isso que permite avaliar quanto determinado grupo—dependendo
de seu lugar na sociedade—sofre com obstáculos ou é autorizado e favorecido. (RIBEIRO,
2019, posição 197). Ou seja, em Quarto de Despejo além de reconhecer a
subjetividade da escrita de Carolina, proporcionada por sua condição de
moradora da favela, é preciso ressaltar os obstáculos que sua condição social
impôs para que sua escrita fosse ouvida, publicada e reconhecida como
literatura. A subjetiva pode ser notada a partir da seguinte passagem:
Percebi que
chegaram novas pessoas para a favela. Estão maltrapilhas e as faces
desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me de ver tantas agruras
reservadas aos proletários. Fitei a nova companheira de infortúnio. Ela olhava
a favela, suas lamas e suas crianças paupérrimas. Foi o olhar mais triste que
eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos
cuidados da vida. (JESUS, 2020, p. 46)
Quanto aos obstáculos enfrentados
para publicar seu livro, o excerto a seguir retirado das notas extras da edição
publicada pela Ática (2014): “Eu era revoltada, não acreditava em ninguém.
Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não
pode ter ideal nobre.”. (p. 197). Para corroborar com o entendimento de lugar de fala, Matos (2014) discorre:
Desde Quarto de Despejo (1960) Carolina
buscaba construir una imagen de escritora. Grafomaníaca ˡ por excelencia, quería ser leída y entrar al
círculo literario, no obstante, su lugar de habla limitado por su condición
social, racial y de género reduciría las posibilidades de su inserción. En este
sentido, su escritura está marcada por las censuras y la dificultad de ingresar
en el campo literario brasileño, además de sus experiencias con la
discriminación racial y social. (p. 32)
A
escrita de Carolina, segundo Carlos Vogt (1983), transformou sua experiência de
vida em uma experiência linguística, o que permitiu distingui-la de seus pares,
conquistando novos a possibilidade de romper com o ciclo da miséria. Carolina
confirma essa condição ao testemunhar: “...Aqui na favela quase todos lutam com
dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu.”. (p. 36); ou
seja, saber escrever era um diferencial, era ter a oportunidade de narrar a
própria história e expressar as várias formas de sofrimentos que ela via e
vivia.
Carolina previa o que
sua escrita poderia provocar “Eu sabia que ia angariar inimigos, porque ninguém
está habituado a esse tipo de literatura. Seja o que Deus quiser. Eu escrevi a
realidade.”. (p. 197). Mas ela não desistiu, “—Eu escrevo porque preciso
mostrar aos políticos as péssimas qualidades de vocês. E eu vou contar ao
repórter.” (p. 172), pois acreditava que
através da publicação de seus livros sua condição de vida poderia mudar: “Viso
com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela.” (p. 27). E apesar
de todos dos obstáculos, como demonstra o trecho a seguir: “Cheguei na favela.
Triste como se tivessem mutilado os meus membros. O The Reader Digest devolvia
os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua
obra. (p. 154)”, ela sabia que suas palavras um dia seriam lidas: “...Há de
existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as
misérias são reais.”. (p. 46).
E aos que leram, foi
conhecida a dureza da vida de Carolina:
Chegaram novas
pessoas para a favela. Estão esfarrapadas, andar curvado e os olhos fitos no
solo como se pensasse na sua desdita por residir num lugar sem atração. Um
lugar que não se pode plantar uma flor para aspirar o seu perfume, para ouvir o
zumbido das abelhas ou o colibri acariciando-a com seu frágil biquinho. O unico
perfume que exala na favela é a lama podre, os excrementos e a pinga.
(JESUS, 2014, p.
47)
Mesmo
narrando de maneira lírica alguns fatos de seu cotidiano, “Oh! São Paulo, rainha
que ostenta vaidosa tua coroa de ouro que sã os arranha-céus. Que veste viludo
e seda e calça meias de algodão que é a favela.” (p. 41); e por vezes até
demonstrando seu senso de humor como no episódio do “gato sábio” que “Não tem
amor profundo e não deixa ninguém escravisá-lo. E quando vai embora não
retorna, provando que tem opinião.”(p. 147); a vida de Carolina era dura e sua
escrita foi uma maneira de resistir: “Quando eu não tinha nada o que comer, em
vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou
pensam na morte como solução. Eu escrevia meu diário”. (p. 195).
3. A escrita como resistência
Em sua tese de doutorado, Rafaella
Fernandez (2015) reconhece que Carolina, “em seu ato de escrever, ela resiste;
e, ao resistir, ela inventa e cria um novo sentido, a partir de seu próprio
discurso. (p. 255). Sob a perspectiva de BOSI (2002), ela registra que: “Resistência
é um conceito originariamente ético, e não estético. O seu sentido mais
profundo apela para a força de vontade que resiste a outra força, exterior ao
sujeito. Resistir é opor a força própria à força alheia. O cognato próximo é
in/sistir; o antônimo familiar é de/sistir”.
Fernandez também apresenta a
conclusão de Bosi acerca da temática narrativa
e resistência: “ ‘[...], eu diria que a ideia da resistência, quando
conjugada à de narrativa, tem sido realizada de duas maneiras que não se
excluem necessariamente: a) a resistência se dá como tema; b) a resistência se
dá como processo inerente à escrita’ ” (BOSI apud FERNADEZ, 2015, p.255).
Enquanto Carolina
escrevia ela recobrava seu fôlego. Ler e escrever era o que ela fazia nas horas
vagas. Seu apreço pela leitura era tão grande que ela construiu um quartinho de
tábuas em seu barracão para guardar seus livros e escrever (p. 86). Ela não
sabia dormir sem ler, gostava de manusear os livros e os considerava a melhor
invenção do homem (p. 24). Sobretudo escrever era poder livrar-se da dureza da
sua vida:
Deixei o leito para escrever. Enquanto
escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do
sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista
circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (...) E
preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.
(JESUS, 2014, p.
58)
Mas escrever era também
resistir, dominar seus impulsos: “Sei dominar meus impulsos. Tenho apenas dois
anos de grupo escolar, mas procurei formar o meu carater. A unica coisa que não
existe na favela é solidariedade.” (p. 16).
4. A escrita como representatividade da mulher negra
A
escrita de Carolina, representa a mulher negra, pobre e que preferia a
liberdade a se casar. A sua escrita encontrou a barreira do racismo, mas ela
tinha orgulho de sua cor: “...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de
circos. Eles respondia-me: —É pena você ser preta (p. 64). Mas ela sabia o
valor das suas palavras, e sabia reconhecer que a sua pobreza a permita
escrever de maneira única: “as lagrimas dos pobres comove os poetas. Não comove
os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um
expectador que assiste e observa as trajedias que os politicos representam em
relação ao povo. (p. 53).
Clarice
Lispector, como demonstra um diálogo entre as duas autoras, publicado como
matéria de Paulo Mendes Campo, para a revista Manchete (1961)², fez elogios à
escrita de Carolina. O diálogo das duas autoras teria sido assim: “Como você escreve elegante”, disse
Carolina, ao que Clarice respondeu. “E como você escreve verdadeiro,
Carolina!”.
Carolina também representava as mães solo. Ela não viu
casamento como um pressuposto para a felicidade, muito pelo contrário: “Não
casei e não estou descontente. Os que preferiu me eram soezes e as condições que
eles me impunham eram horríveis.”. (p. 17) Para ela, a liberdade de exercer seu
ofício de escritora era primordial:
O senhor Manuel apareceu dizendo que quer
casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, um
homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta
para escrever. E que deita com lapis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é
que eu prefiro viver só para o meu ideal. (JESUS, 2014, p. 49)
Citando Antônio Cândido (2006, p. 64): “escrever é
imprescindível ao verdadeiro escritor, quer isto dizer que ele é psiquicamente
organizado de tal modo que a reação do outro, necessária para a
autoconsciência, é por ele motivada através da criação. Escrever é propiciar a
manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nós mesmos.”.
5. Conclusão
Em Quarto de despejo: diário de uma
favelada, reconhecemos Carolina Maria de Jesus como uma das grandes autoras do
país. Identificamos em sua obra uma escrita de representatividade e
resistência. Ela sabia o poder de suas palavras, ao homem que queria matá-la
ela rebateu: “Ele é de ferro e eu sou de
aço. Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E
as feridas são incicatrisaveis.” (p. 48). Mas há algo a respeito de Carolina
que não podemos olvidar, é o que nos adverte Conceição Evaristo (2005, p. 53 ):
Não se pode esquecer,
jamais, o movimento executado pelas mãos catadoras de papel, as de Carolina
Maria de Jesus que, audaciosamente reciclando a miséria de seu coditiano,
inventaram para si um desconcertante papel de escritora.
Legenda:
ˡ Rufino (2009) argumenta
que la tendencia compulsiva de Carolina para escribir le entregaba el status de
escritora: “Hay una diferencia esencial entre el que escribe por escribir y el
escritor. Este es aquel que tiene algo que decir a favor de los hombres, de
forma que todos los hombres puedan comprender. Carolina Maria de Jesus, en este
sentido, fue una auténtica escritora, quedan pequeños delante de ella los que
la menospreciaron o la tomaron tan solamente como fenómeno de los medios. Honró -para usar la expresión
convencional- el oficio
de escritor”
(MATOS, 2014, p. 26).
²A
fonte encontra-se na reportagem de Marise Hansen para o portal Quatro Cinco Um,
da Folha de S. Paulo, intitulada: “Os
laços que unem Clarice e Carolina: os vazios da e as subjetividades de
‘Laços de Família’ e ‘Quarto de despejo’ sessenta anos depois de seu
lançamento” (2020). Site:
https://www.quatrocincoum.com.br/br/artigos/literatura/os-lacos-que-unem-clarice-e-carolina
Referências bibliográficas:
CÂNDIDO, Antônio. Literatura
e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-representação da
mulher negra na literatura brasileira. In. Revista Palmares: cultura
afro-brasileira. Ano I, nº 1, agosto, 2005.
http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/52%20a%2057.pdf
EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa
afro-brasilidade
SCRIPTA, Belo Horizonte,
v. 13, n. 25, p. 17-31, 2º sem. 2009. http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365/4510
FERNANDEZ, Raffaella
Andréa. Processo criativo nos manuscritos
do espólio literário de Carolina Maria de Jesus. 2015. 1 recurso online (315
p.). Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos
da Linguagem, Campinas, SP.
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270193
JESUS, Carolina Maria. Quarto de Despejo: diário de uma
favelada. 10. Ed. São Paulo:
Ática, 2014.
MATOS, Fernanda Oliveira. Ahora yo hablo y soy oída. Mujer negra, autoría y
testimonio en Diário de Bitita, de Carolina Maria de Jesus. Dissertação de
Mestrado. Universidad de Chile, 2014. http://repositorio.uchile.cl/handle/2250/129891
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de Fala?. Belo Horizonte:
Grupo Editorial Letramento. 2017.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia
das Letras. 2019. Edição Kindle.
SANTOS,
Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus: uma escritora
improvável. Rio de Janeiro: Garamond; Fundação Biblioteca Nacional, 2009.
VOGT, Carlos. Trabalho, pobreza e trabalho intelectual.
In: SCHWARZ, Roberto (org.). Os Pobres na Literatura Brasileira. São Paulo:
Brasiliense,1983, p. 205-213.
Vídeos:
Carolina de Jesus,
fenômeno editorial no início dos anos de 1960 - Jornal Futura - Canal Futura
<https://youtu.be/PucTtvFtDBA>
Nação | TVE - Carolina de
Jesus: <https://youtu.be/E5V8SvEN2lI>